Jamb Cultura 2017; 16-17(46-47):329-336
333
Conto
2
o
lugar
V Concurso
Nacional
de Crônicas
e Contos
da AMB
O
s olhos de Fernanda se encontram com eles mesmos no espe-
lho do teto. Enquanto sente a distante ardência que lhe toma
a virilha, se questiona se aqueles olhos são seus ou outros.
Aqueles olhos são os mais belos olhos já vistos por ela. Talvez por isso
duvide que sejam seus. Aquele momento, como tantos outros, mostra-
-se ser exatamente o contrário daquilo que lhe haviam dito. Aos pou-
cos volta a ouvir os sons do lugar. O estampido oco da pele de outro ba-
tendo contra a sua. A fricção retorcida dos lençóis se enrolando. O grito
sufocado na voz do rapaz. Nada ali é como lhe haviam dito. Nunca foi.
Essa seria a última tentativa.
Ela lembra de seu primeiro namorado no colegial, de como sua mãe
lhe dizia que ela era muito nova para estar se relacionando com qual-
quer um. Lembra das amigas chamando-a de puta depois que ela lar-
gou o primeiro e foi para o segundo e para o terceiro... Lembra da di-
retora de sua escola chamando-a para falar sobre como ela se vestia e
sobre as marcas de corte em seus pulsos. Lembra de como aquilo ma-
chucava e dos cortes que fez para aliviar a dor. Lembra de tudo isso e
também lembra que nesse momento eles estavam longe. Só ela esta-
va ali, só ela existia naquele momento.
O rapaz se arrastando para perto dela, beija-lhe a face docemen-
te enquanto ela ainda se encara, ou encara a outra? Sentindo os dedos
quentes do rapaz correrem por suas pequenas orelhas, Fernanda se
vira e olha fundo nos olhos dele. As pupilas estão dilatadas e umedeci-
das. Tão cheias de vida que ela é obrigada a sorrir em respeito. O rapaz
sorri de volta. Se havia um momento para algo despertar dentro dela,
era esse. Suas pequenas mãos tocam o rosto do rapaz, fazendo aque-
le olhar se perpetuar pelo máximo de tempo. Nada. Nem uma fagulha,
nem um calor intenso, nada.
Ela lembra de como lhe falaram para sempre cruzar as pernas, de
como deveria alisar os cabelos e de outras coisas que todas as meninas
deveriam fazer. Lembra que isso nunca fez sentido para ela no colegial e
agora muito menos. Lembra dos momentos de solidão em que se encon-
trava em frente ao espelho do seu quarto. Lembra de como desejava e ape-
nas desejava. Lembra de falarem que era proibido, que era preciso amor.
Fernanda se levanta e vai ao banheiro. Os pequenos
kits
de higiene
dispostos sobre a pia a fazem sorrir. Os lençóis trocados a cada visita, as
banheiras limpas com material hospitalar. Tudo grita: “Aqui, você irá
lidar apenas com a
sua
sujeira!”. Dentro do chuveiro, ela sente a água
quente escorrendo pelo seu corpo e um leve cansaço começa a tomar
conta. É recompensador. Ela se sente linda e qualquer um que a olhas-
se nesse segundo seria tomado por um vislumbre que vai além do eró-
tico ou do pornográfico. Fernanda sabe disso. Fernanda sempre soube.
Ela lembra das tardes que passava na biblioteca da escola. Lem-
bra de Capitu, de Léonie e Pombinha, Aurélia Camargo e Iracema. Mas,
mais do que todas as outras, lembra de Macabeia. Lembra de não acei-
tar Macabeia e de preferir morrer a ser Macabeia.
Seu banho dura pouco mais de dez minutos. Quando sai do box, o
rapaz já está vestido e sentado na cama redonda. Ela começa a pegar
as roupas no chão, ainda observando seu corpo pelos espelhos. Sen-
Fernanda
ta-se no lado oposto da cama e começa a se vestir.
Existe ummar de tecido emaranhado entre ela e
o rapaz. Cada movimento seu é admirado por
ele. Segundos se passam enquanto Fernan-
da se troca, mas para o rapaz e as
outras dela mesma que a assistem,
cada peça se encaixa ao seu corpo
em uma sucessão de fotografias.
Quando fica pronta, Fernanda
pede ao rapaz que lhe deixe
em casa. Ele leva um tempo
para se recompor da vi-
são que estampa-
rá sua mente em
muitos momentos de so-
lidão e dá uma afirmativa enfática.
Ela lembra de falar para a mãe que queria fazer Letras. Lembra de
dizer que a faculdade era longe, mas que havia bolsas. Lembra de a mãe
rir e chamá-la de vagabunda. Lembra do desespero que sentiu. Lembra
de seus livros e lembra de Macabeia. Lembra que deveria dar um pas-
so além. Lembra que não mais se cortou.
Com tudo pago, eles seguem pela rodovia. Fernanda pede para que
o rapaz não tenha tanta pressa. Ele só pensa na aula que terá amanhã,
mas acata o pedido. Ela quer observar as luzes amarelas que brilham
no alto dos postes. Com as pernas cruzadas em frente ao pequeno e
curvilíneo corpo, ela coloca a mão direita para fora da janela e sente o
vento abafado da noite correndo contra seus dedos. Tudo ali causa um
pequeno arrepio em Fernanda. O céu, o asfalto, o vento, a noite. A dis-
tância entre ela e o rapaz cresce, mas o sorriso estampado na cara dela
ainda dá alguma esperança para ele. Já ela, está sozinha.
Agora, em frente ao seu prédio, Fernanda se dá conta de como o tem-
po passou rápido. Ela estava tão longe. O rapaz pede que ela ligue. Diz
que gostou muito de conhecê-la e que gostaria de vê-la novamente. Fer-
nanda responde que foi tudo ótimo, mas que acha melhor deixarem as
coisas como estão. Ela estala um beijo em sua bochecha e sai do carro.
Ela lembra de ir para as primeiras fileiras e de como estudou. Lembra
de ter passado onde queria e de ter conseguido a bolsa que precisava para
se manter. Lembra de mostrar o que havia conseguido para a mãe desin-
teressada. Lembra da felicidade que sentiu ao fazer suas malas e ir embo-
ra. Lembra de conseguir um apartamento decente e barato perto da fa-
culdade. Lembra de como amou a vista da janela de seu apartamento do
segundo andar. Lembra de que essa era a sua vida e lembra de Macabeia.
Já coberta, na segurança da própria cama, Fernanda se lembra com pesar
do descaso da mãe, da diretora e das amigas e uma lágrima quente escor-
re pelo seu rosto. Ela sente a pequena pérola de mágoa alcançar a sua ore-
lha e sorri aliviada, sabendo que não era Macabeia e que tudo ficaria bem.
João Batista Paula Neto
São Carlos – SP