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334

Jamb Cultura 2017; 16-17(46-47):329-336

Dinda

A tia abre o cordão da bolsa

e me dá cem dinheiros.

Num sorriso:

“A quem Deus não deu filhos,

O Diabo deu sobrinhos.”

Os olhos e o coração

agradecem ao Diabo.

C

ílios imensos, lindos os dele. Arqueavam-se densos no

mesmo castanho de cabelos e sobrancelhas, sempre aque-

las asas enormes viajando devagar por longas distâncias

imaginadas e lá pousando o olhar. Que antigos e nômades

gens

,

como que pequenos tuaregues, germinariam no corpo moreno

de descendente árabe, aquele filhote perdido em permanente

espanto? Eu me intrigava: como floriria ali um qualquer pensa-

mento, que tessituras se imbricariam na ideia do menino, não

mais que gaguejadas na sequência das imagens? Seria a criança

uma completa escuridão e quando alguma coisa era percebida

pela primeira vez – a descoberta! – então fazia-se a luz? Ou se-

riam tochas pequeninas que se iam acendendo na caverna que

era já puro tesouro escondido? Nascera pensativo o pirralho: a

cabeça sempre um pouco queda de lado, mesmo depois de fir-

me o pescoço, somente os olhos determinados numa busca con-

tínua e, como se tivessem eles bocas e dentes, ficavam a mor-

discar a polpa das pequenas surpresas, como que ruminando

lentamente por dentro delas. Na mão pequenina, o dorso se ar-

redondava no gesto titubeante; covinhas cavadas rasas na nas-

cente de cada dedo exploravam as primeiras texturas da vida.

E o indicador direito ia apontando coisas, lugares, objetos, por

vezes roçando o abstrato: “Ó, abô..., abô...” Palavras que eram so-

mente um embrião sem asas que o transportassem, incapazes

de lhe devolver o pra sempre perdido das coisas, o inalcançável.

A borboleta: ficara ali parada, imóvel no galho seco daquela

árvore sem primavera. Tinha asas de seda amarela, duas saias

superpostas em volteios suaves pela brisa da manhã. A crian-

ça a capturou com os olhos quase virgens, o dedo em riste, sem

susto:“A flô!”. Era, sim, uma flor de ensolaradas pétalas, pistilos

longos e negros, linda como uma graça concedida àquele velho

galho quase morto. Fora uma flor de delicadeza desabrochada

da retina de ummenino se debatendo trôpego para conseguir

caminhar dentro da própria infância atirada entre os riscos do

mundo. Por alguns poucos instantes, a flor fora toda a verdade

do menino e da borboleta. Ao menos até bater asas em retirada,

na urgência de transmutar-se novamente no inseto que havia

sido, leviana na posse de seu voo, nunca presa a um ramo seco.

Nos olhos do menino, a nata de mágoa, o desaponto – sofrera a

primeira traição. “Ó, filhote, é só uma borboleta, viu? Bor-bo-le-

-ta!!”, ia a mãe distraidamente despetalando sílabas e ilusões. Eu,

tia estorvada, jazia ali como um buquê de flores murchas, todos

os talos paralisados num silêncio sem qualquer recurso. E ele,

ainda sem conhecer a piedade pelas tias incautas, me olhava gra-

ve, sem fronde que me desse abrigo, todo sem sorrisos, me fu-

zilando o peito:“Bo-bo-le-ta!” Quanto ali envelhecemos juntos?

Nem sempre o tempo é borboleta tão ingrata. Desaponto cica-

trizado, restava, sim, a esperança, namanhã de abril, escancarada

em azuis. Uma brisa suavíssima roça as águas da lagoa, ondulan-

do a superfície e chamuscando nela milhares de minúsculas faís-

cas pela graça de um sol pleno.“Ó, uma plantação de estrelinhas!”,

aponta encantado com a própria descoberta.“Estrelinha...”, apon-

ta-me ele antes que eu percebesse. Eu, tímida e confusa, pega em

flagrante gosto, voume transformando numa imensa Vesper re-

cém-iluminada pelas ordens do pequeno querubim que, todo fa-

ceiro, me sabe desmanchada e rebrilhando dentre os seus dedos.

As mãos mal me cobriam as maçãs do rosto, pupilas investiga-

vam pupilas, como que em confissão sussurrada se comprome-

te:“Dindinha, a alegria chegou, a tristeza fugiu!”

Parecia pensar muito o menino, como se desde cedo pressen-

tisse o fio enovelado dentro de si, o tato desfazendo aos poucos

os primeiros nós, com gosto e receio. Estava sempre muito ocu-

pado em conversar com seus botões e em cerzir casas que os cou-

bessem. Viajava ajoelhado no banco traseiro do carro, olhando o

caminho já percorrido. Me perguntava sobre o que pensaria ele.

“Fico aqui, Dindinha, olhando o meu mundinho desse quadra-

dinho!”... A fresta pequena pra tanta vontade de olhar, o mun-

do apertando devagar o peito, a vida arrochando o cerco desde

tão cedo, nossas heranças se tocando,

gens

iguais correndo em

nosso sangue: meu pequeno bandoleiro me roubando os olhos

e se pondo a escancarar as coisas do mundo, buscando um ca-

minho muitas vezes visto pelo avesso...

Como é que se apalpa o tempo, o instante mesmo, quando?

O garoto o atravessava incólume. Crescia. Cresceu. Roça na mi-

nha uma face de pelos brotando esparsos. Conversa pouco, mas

fluente e sempre enredado em entrelinhas, perdido nelas, que

a palavra selvagem ainda é rebelde ao seu comando e o pensa-

mento ainda fala por imagens.

Ao menos assim achei eu, tia sempre distraída...

Até receber um pequeno envelope:“Presente de aniversário.”

Dentro, uma folha de linho, escrita em letra caprichada, mostra-

va o seu primeiro poema.

Claudia Botelho

Belo Horizonte – MG

Conto

Menino

2

o

lugar

V Concurso

Nacional

de Crônicas

e Contos

da AMB