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Jamb Cultura 2017; 16-17(46-47):329-336

C

arlos e Anita já eram casados há 11 anos. Até então a maternida-

de não havia soprado sua benção, suas alegrias, suas insatisfações,

seus problemas e temores entre o casal, abalado a ponto de am-

bos viverem esses últimos anos de vida em comummelancólicos, desen-

corajados, um vendo no outro a culpa da esterilidade.

Casaram-se, ele aos 25 anos, ela aos 18 anos, levados ao enlace por

amor recíproco, sincero, conhecedores do novo papel que iriam repre-

sentar no lar, família e sociedade. O tempo corria, os dias eram passagei-

ros, semanas indiferentes, os meses sombrios, os anos transformando-

-se em períodos vazios, monótonos e desmotivados.

Anita não demorou a compreender a tristeza do marido, seu silêncio

diante de certos problemas da convivência, sua angústia, perguntas que

ela lhe fazia... Antes mesmo que concluísse seu pensamento, ele deixa-

va o recinto. Saía como se algo o castigasse muito. Ela entendia no fun-

do os sentimentos do marido. Carlos, após o terceiro ano de convivência,

percebendo que a esposa não tinha propensão à maternidade, resolveu

dialogar com Anita a respeito da sua esterilidade. Ele não foi muito feliz

ao abordar o assunto. Ela já tinha sua opinião formada. Não era ela a es-

téril, devia ser ele, pois vinha de família fértil, avós e bisavós legaram à

posteridade uma legião de descendentes. O diálogo sobre o assunto, cer-

to dia, generalizou-se em ligeira discussão que acabou em desentendi-

mento, guardando entre ambos um silêncio frio durante todo o dia, mas

respeitoso e só rompido na manhã do dia seguinte. De qualquer modo,

Carlos, enchendo-se de coragem, disse a Anita que iria levá-la a um es-

pecialista para que desse a última palavra sobre o assunto. A Anita não

lhe agradou a sugestão e procurou convencê-lo que ele, sim, era o res-

ponsável por não haver concebido. Como se amavam e compreendendo

a tristeza que os dominava pelo estado da situação, ela deixou-se envol-

ver pela opinião do marido e, para não o ver sofrer, concordou em procu-

rar um médico experiente no assunto. Assim sendo, foi tratada por lon-

go tempo e nada aconteceu, só fortalecendo a ideia de que o marido era

o responsável. Tanto que sua esposa insistiu, ele também se deixou sub-

meter a exames e tratamentos e, igualmente, sem resultados satisfató-

rios. Novos dias, meses e mais alguns anos rolaram implacavelmente

sem modificação nos usos e costumes do casal, que já aceitava a situa-

ção como um fatalismo irremediável.

Anita, compreendendo a situação do esposo e deixando-se dominar

por uma amargura profunda, via claramente que Carlos atribuía aquilo

a uma falha da natureza. Ela começou a sofrer copiosamente e passou a

buscar curandeiros, comadres, feiticeiras, garrafadas e terreiros, procu-

rando com tais práticas salvar sua convivência com o amado esposo, que

poderia vir a enfraquecer por tais circunstâncias. Entretanto, com todos

esses recursos, era ela que estava enfraquecendo ao entregar-se a esse

desastroso caminho de tratamentos estranhos. Estava emagrecida, páli-

da, com indisposições constantes, sem a alegria de antes, insônias cons-

tantes, desmanchando-se nas agruras das noites frias, silenciosa e sem

coragem de conversar com o esposo em um diálogo mais íntimo, espon-

tâneo e atrativo como outrora.

Carlos, compreendendo que Anita, como ele, por falta de um filho, so-

fria bastante, resolveu recuperar o tempo passado, quando os dois viviam

em alegria, entre flores e sorrisos com a vida mansa e terna. Por isso, re-

solveu mudar de conduta para evitar uma derrocada total. Não podia dei-

xá-la sucumbir face aos seus sentimentos de tristeza e de opinião de que

era ela a responsável pela esterilidade. Pouco a pouco mudou seu com-

portamento. Começou a aceitar a ideia de que o mal estava do lado dele

e de seus familiares. Era ele quem deveria fazer tratamentos e sujeitar-

-se aos regimes médicos.

Anita notou a mudança de atitude do marido, admirou-se e, com o

decorrer do tempo, passou a aceitar o procedimento, dando-lhe todo o

O dia de Natal

apoio. Carlos, satisfeito, observou o excelente efeito de sua nova condu-

ta, percebeu a recuperação do astral da esposa, olhares brilhantes, entu-

siasmo, disposição mais calorosa, voltando a reviver dias do passado, seu

temperamento, reconquistando palmo a palmo.

Haviam se casado no dia 25 de dezembro, na festa do Natal, quando

também Anita comemorava seu aniversário. Foi naquela data que fica-

ra conhecendo Carlos, que viera em sua casa a convite de uma de suas

irmãs, colega de Anita. Tinha elogiosas informações de seu mano e so-

licitou que o levasse na comemoração de seu aniversário e do Natal. Foi

então que, em casa dela, se conheceram, palestraram, dançaram, estive-

ram juntos todo o tempo da festa e, dali por diante, caminharam juntos,

até o altar de onde se tornaram marido e mulher. Portanto, o Natal foi

a festa em que se uniram e que continuou os unindo. Ele desejava fazer

surpresa à esposa, comemorar no dia do Natal, que estava próximo, um

novo período para suas vidas. Realizar uma grande festa. Chamou-a e in-

formou que Jesus viria em sua casa em carne e osso, desejava que ele ti-

vesse calorosa recepção, entre flores, cantos, sorrisos, luzes e muita ale-

gria e felicidade. Amesma recomendação fez aos familiares e os convites

começaram a ser divulgados com grande difusão. O entusiasmo de Car-

los causou estranheza à esposa e aos familiares, que passaram a suspei-

tar que seu estado mental não estivesse muito perfeito. Anita ficou pen-

sativa, preocupada, mas não desejou fazer ciência de suas dúvidas aos

parentes, preferiu aguardar os acontecimentos e as atitudes do marido.

Na verdade, Carlos havia contratado um amigo bastante religioso

para que se fantasiasse com as vestes brancas de Jesus e que fosse a sua

casa para proferir umas orações pela data comemorativa do nascimento

do menino Jesus e comemorar o aniversário de sua amada. Chegou o dia

e a curiosidade dos familiares era geral. Carlos estava alegre, pedia que

aguardassem, pois ele deveria chegar próximo da meia-noite.

Pediu licença aos presentes, pois iria à padaria buscar as encomendas

para a festa. Chamou a doméstica que havia ficado para ajudar na cozinha.

– Vamos para me ajudar a carregar as encomendas. São muitas!

Assim, saíram em busca dos comestíveis. No trajeto passaram por

uma caçamba, dessas de entulho. Estava apressado, mas sentiu que ha-

via algo estranho dentro do enorme recipiente. Pareceu que havia movi-

mento e ligeiro barulho, mas não deu importância, estavam com pressa.

Apanharam todo o material encomendado, já pronto e embalado, acer-

tou a conta e voltaram. Ao passar de novo rente a peça metálica enorme,

desta vez ouviu o choro de um bebê. Imediatamente, olhou para dentro

e comentou com a secretária:

– É um recém-nascido enrolado num pano! Nossa, vamos levar! Quem

poderia ter feito essa barbaridade?

A acompanhante segurou o bebê e Carlos apanhou as compras. Ca-

minhando, pensou e disse:

– Você, ao chegar, entre pelos fundos com o bebê, e leve ao quarto de

hóspedes. No armário, tem numerosas roupas de criança, que compra-

mos a espera de um filho que nunca tivemos. Vista esse menino como Je-

sus. Eu levo as compras para a cozinha. Os convivas nem vão dar por sua

falta. A alegria vai estar geral. Quando o menino estiver no jeito, venha

à sala e grite:“O menino Jesus chegou e está no quarto”.

O alvoroço foi geral, todos correram emdireção ao quarto para ver. Sur-

presa total. Carlos e a empregada começarama contar a história. Assim foi

aquelemaravilhoso e inesquecível dia de Natal.Meses depois,após consegui-

rem regularmente a adoção,souberampela polícia que amãe abandonara

o bebê e suicidara-se naquele mesmo dia, atirando-se nos trilhos dometrô.

Carlos Garcia de Queiroz Filho

Ortopedia

Campo Grande – MS

Conto

1

o

lugar

V Concurso

Nacional

de Crônicas

e Contos

da AMB