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Jamb Cultura 2017; 16-17(46-47):329-336

331

C

ostumo dizer que se não fosse médico seria motorista de

caminhão. Muito mais por uma absoluta ausência de vo-

cação para qualquer outra coisa do que por gostar de di-

rigir ou viajar. Não sei quando resolvi ser médico, mas com cer-

teza um dos episódios da minha vida que marcou essa escolha

aconteceu quando tinha dez anos.

Eu morava no bairro da Vila Mariana, que, na época, era uma

verdadeira cidade do interior. A rua era de terra e terminava na

única via pavimentada das redondezas, a Rua Rio Grande, cal-

çada com paralelepípedos, ligando a Rua Rodrigues Alves à Rua

Sena Madureira. A fábrica da Colgate Palmolive ficava bem em

frente a nossa rua. Na esquina, o armazém do Seu Manuel, aon-

de eu ia sempre comprar alguma coisa para minha mãe. Foi lá

que estive pela primeira vez frente à frente com a morte.

O cachorro estrebuchava após ter sido atropelado por um

caminhão. A “barrigada” misturada a uma grande quantidade

de sangue, que parecia desproporcional ao tamanho do animal,

pendia para fora do corpo, no calçamento. O quadro todo fazia

as pessoas que passavam virarem os rostos, enojadas. Seu Ma-

nuel, dono do armazém, ao perceber que o pobre animal conti-

nuava vivo, pegou uma grande pedra e preparou-se para esma-

gar sua cabeça e dar fim ao seu sofrimento.

— Seu Manuel, não faça isso!

—O cachorro está sofrendo, meu filho! É só para acabar com

o sofrimento dele! — disse-me o português enquanto eu, cho-

cado, observava o que acontecia.

—Não, eu vou cuidar dele!

—Não adianta mais! Ele vai morrer! — insistiu o homem.

— Não! — disse-lhe, aproximando-me do cachorro e pen-

sando no que fazer.

Talvez com mais pena de mim do que do animal, o portu-

guês finalmente cedeu.

— Está bem, mas tire ele daqui!

— O senhor me empresta um saco?

Dizendo isso, chamei o Júlio, meu amigo que também obser-

vava a cena, e fomos apanhar o saco no armazém.

— Júlio! Você me ajuda a levar esse cachorro para minha casa?

— Eu não! Que nojo! Ahrrrr!

— Vamos lá, pega aí! — passei o saco por baixo do cachor-

ro de maneira a servir de maca. Reclamando e tendo ânsia de

Aos dez anos

Crônica

vômito, Júlio segurou na outra ponta e levamos o bicho até em

casa, há uns cemmetros dali. Instalamos o animal no chão do

porão. Júlio saiu de lá correndo e sumiu. Lavei as mãos e co-

mecei a tratá-lo. O coitado, em choque, permanecia desacorda-

do. Lavei as alças intestinais, coloquei-o de barriga para cima

e fui empurrando tudo para dentro. Com uma agulha de cos-

tura da minha mãe e “cordonê” (linha de empinar pipa), fui

aos poucos costurando a enorme abertura causada pelo cho-

que com o caminhão. Meia hora depois, pulverizei “pó de sul-

fa” na incisão. Improvisei uma faixa com tiras de lençol velho

e envolvi todo o seu abdômen. Como ele continuava desmaia-

do, deixei ao seu alcance uma vasilha com água e uma latinha

com leite. Tranquei o porão e entrei em casa sem contar a nin-

guém o que havia feito.

No dia seguinte, ao levantar-me, a primeira coisa que fiz foi

ver o meu paciente. Lá estava ele, ainda meio tonto, mas por in-

crível que pareça, em pé! Com cuidado me aproximei e o acari-

ciei. Depois lhe dei miolo de pão com leite. Parece que o pós-ope-

ratório estava indo bem. Na hora do almoço, dei-lhe mais leite e

fui para a escola.

Quase não prestei atenção às aulas. Pensei a tarde inteira em

meu paciente. Assim que tocou o sinal, voltei correndo para vê-

-lo. Lá estava ele. Dessa vez, chegou até a abanar o rabo. Trouxe

o seu jantar, que incluía carne moída e purê de batata. Tudo es-

tava bem. Fui dormir tranquilo, pensando em trocar o curativo

no dia seguinte. Acordei e ansioso fui até o porão.

O cachorro havia sumido! Tinha ido embora! À noite, prova-

velmente, esquecera a porta aberta. Foi o que bastou para o meu

paciente fugir. Triste, saí procurando pelo quarteirão, sem entre-

tanto encontrá-lo. Voltei para casa pensando na enorme ingrati-

dão de que eu havia sido alvo. Com o episódio, aprendi duas coi-

sas muito importantes, para o resto dos meus dias:

1. Curar é muito bom!

2. Faça a sua tarefa e tenha prazer em fazê-la bem. Não es-

pere reconhecimento.

A partir desse dia, resolvi que ser médico talvez fosse o meu

caminho.

Rubens Paulo Gonçalves

São Paulo – SP

1

o

lugar

V Concurso

Nacional

de Crônicas

e Contos

da AMB