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Jamb Cultura 2017; 16-17(46-47):329-336
Crônica
O Farol
A
s memórias são parte de nossa própria vida e acabam
por constituir a essência do ser que somos. Dia desses, al-
gumas delas me vieram à mente quando estava parado,
em pé, ao lado do Farol rotativo que emite seus sinais em for-
ma de fachos de luz para a imensidão do espaço, a partir do ae-
roporto de Rio Preto. Cadenciadamente, a cada cinco segundos,
um feixe de luz amarela e, em seguida, um de luz verde cortam
os céus, com uma mensagem constante e monótona. Parece a
cada instante dizer: aqui existe um aeroporto, há uma pista de
pouso, com equipamentos e gente zelando pela segurança das
aeronaves e das pessoas que estão dentro delas.
Talvez o Farol esteja dizendo que, como a Estrela do Orien-
te que guiou os Reis Magos em sua viagem até o pequenino Je-
sus, assim ele também é um guia para tantos viajantes dos ares!
Nestes devaneios, lembrei-me de uma noite muito escura, noi-
te de Natal, cuja névoa dos anos a deixam no limbo da minha
memória. O fato ocorreu numa época em que, na aviação, não
existiam os sofisticados equipamentos que hoje nos auxiliam
a chegar ao destino desejado com segurança. Não dispúnha-
mos de auxílios de Rádio Navegação e do moderno GPS (
Grou-
nd Position System
), “Sistema de Posicionamento no Solo”, que,
a qualquer instante, nos informa a posição geográfica correta
do avião... Não havia nem sido sonhado. Esse equipamento com
informações de satélites artificiais girando em torno da terra
emite sinais eletrônicos com precisão de milésimos de segun-
do, utilizando a avançada tecnologia do mundo quântico. Eles
permitem ao piloto saber qual a distância que o separa do ae-
roporto, assim como o informa acerca da velocidade do avião e
do vento, além do rumo correto a ser seguido. Fornece também
a altura da aeronave em relação ao solo e quanto combustível
ainda resta nos tanques. Também a hora exata da chegada é
mostrada correta e matematicamente a cada instante, um ver-
dadeiro milagre da engenharia moderna! Àquela época, pensar
em usar radares e
transponders
era impossível, pois não faziam
parte do nosso cotidiano. Sabíamos apenas que existiam e que
podiam“ver” o avião o tempo todo durante o voo, numa tela de
computador em um centro de operações, localizado, muitas ve-
zes, a centenas de quilômetros de distância, podendo orientá-lo
da melhor forma para levá-lo com segurança ao destino. Tudo
isso vem se tornando real em nossos dias, mas lembrar do pas-
sado sempre traz sensações interessantes, geralmente impossí-
veis de serem repetidas, enchendo-nos de nostalgia e saudade.
Naquele tempo, os aviadores dispunham, para orientar-se,
apenas de uma tosca bússola, sempre indicando o norte, um
cronômetro a marcar os minutos, um altímetro a mostrar a
altitude e um instrumento básico que chamávamos de “pau
e bola”. Era baseado no efeito giroscópico (em que uma mas-
sa em rotação tende a se manter na mesma posição mesmo
que o seu suporte, no caso o avião, mude de altitude). Esse ins-
trumento tinha um ponteiro que nos informava se a aerona-
ve estava voando em reta ou em curva. Embaixo dele havia
uma bola dentro de um tubo recurvado, que permitia saber se
a curva estava correta ou não. Eram apenas esses os elemen-
tos com os quais contávamos para realizar as nossas grandes
aventuras! Com eles, tínhamos que nos manter orientados e
chegar aos destinos são e salvos.
Amemória levou-me de volta àquela noite escura de Natal, na
qual as estrelas não podiam ser vistas, porque o céu era negro e a
terra desaparecera escondida entre as nuvens, que cobriam como
ummanto toda a superfície que a visão podia alcançar. Meu co-
ração almejava chegar ao lar, onde encontraria os familiares reu-
nidos em festa, para comemorar o Natal. Sentia-me, porém, abso-
lutamente só, eu e amassa de alumínio que me rodeava. O único
ruído era o “ronronar” dos motores a me dizer que ali estavam
para me levar a um lugar seguro se eu fosse capaz de manter a
altitude e calcular com precisão o rumo e o tempo. O tempo e o
rumo do nosso destino, patrões de nossas vidas em todos os ins-
tantes da existência. Minha altitude era de três mil metros e, pelo
tempo calculado, poderia começar a descer. Deveria estar a vinte
minutos do meu destino, podendo baixar até mil metros com se-
gurança,mesmo semver o solo! Será quemeu rumo emeus cálcu-
los estariam corretos? Se não estivessem, poderia chocar-me em
uma elevação inesperada do terreno, algummorro! A sensação
imediata é de medo e apreensão, porque o aviador e o avião são
estranhos a terra e só se sentem seguros enquanto estão voan-
do. Gostaria de me manter nas alturas até o clarear do dia, mas
tenho que continuar descendo, não existe outra possibilidade,
pois o combustível é finito e tenho que chegar a um aeroporto,
que, infelizmente, se encontra na terra e não no ar! Dois mil, mil
e quinhentos, mil e cemmetros, nada mudou, tudo continua es-
curo como breu. Estou chegando aos mil metros, não posso descer
mais. De repente, toda a angústia, medo e insegurança desapare-
cem. Cortando os céus escuros, vejo, ao longe, o Farol com seus fa-
chos amarelos e verdes a me apontarem o porto seguro, no qual
a terra não será mais minha inimiga, pelo contrário, me acolhe-
rá no seu âmago e me abraçará como o bom filho que a casa tor-
na. Lá não estarei mais só, reencontrarei meus familiares e ami-
gos e terei mais uma história para contar! Senti-me privilegiado
pelo amor de Deus emminha vida. Pela maravilhosa seguran-
ça e providência configuradas pelo Farol naquela noite de Natal.
Passaram-se muitos anos, mas o Farol continua lá com sua
missão anônima de indicar o caminho certo para aqueles que
dele necessitam, e nele confiam. Velho Farol com seus fachos
brilhantes, quantas saudades, quantas lembranças, quantas
alegrias, quantas tristezas. Você não pode ser esquecido. Fico
pensando na luz que irradia da cruz de Cristo, que nasceu há
dois mil anos para salvar a humanidade do pecado e da escuri-
dão das trevas. Creio que Jesus sempre foi e sempre será o Fa-
rol de nossas vidas, a única luz, segura e verdadeira, em quem
podemos confiar, seja nos bons momentos, seja nas horas difí-
ceis e de aflição. Por isso, somos sempre vencedores através de
Jesus Cristo, pois podemos chegar ao final de cada ano, tendo a
sua benção e proteção, sabendo que, graças a sua luz, podemos
aumentar o nosso acervo de memórias felizes e realizadoras.
Domingo Marcolino Braile
Cirurgia Cardiovascular
São José do Rio Preto – SP
1
o
lugar
V Concurso
Nacional
de Crônicas
e Contos
da AMB