V
itamina
D:
já
temos
o
suficiente
?
R
ev
A
ssoc
M
ed
B
ras
2015; 61(4):291-292
291
EDITORIAL
Vitamina D: já temos o suficiente?
V
itamin
D:
enough
already
?
A
rnaldo
L
ichtenstein
1
1
Serviço de Clínica Geral e Propedêutica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP
alichten@usp.br http://dx.doi.org/10.1590/1806-9282.61.04.291Estamos em um momento histórico em relação à vita-
mina D, no qual pesquisadores se dividem em dois gru-
pos. Os crédulos acham que devemos suplementá-la, via
oral, para quase toda a população, assim como é feito
com o consumo de flúor adicionado à água, de iodo adi-
cionado ao sal e de ácido fólico prescrito para todas as
gestantes. Por outro lado, os céticos acham que pode es-
tar acontecendo um exagero, a exemplo do uso indiscri-
minado da reposição hormonal ou do uso prolongado
de bifosfonados.
A história nos mostra exemplos reais de grandes acer-
tos e grandes erros nesse tipo de postura.
A indústria das vitaminas tem um faturamento nos
Estados Unidos de 28 bilhões de dólares anuais. Houve
um crescimento de vendas de 30% no período de 1988 a
1994 para 39% entre 2003 e 2006, com o consumo igual-
mente aumentado de 42% para 53% pela população. Em
relação apenas àqueles suplementos contendo vitamina
D, houve um salto de 50 milhões de dólares em 2005 para
600 milhões de dólares em 2011.
Esse crescimento ocorreu a despeito de dados robus-
tos de que a suplementação de vitaminas em pessoas não
desnutridas não previne mortes, doenças cardiovascula-
res, câncer ou declínio cognitivo. Além disso, antioxidan-
tes como betacaroteno, vitamina E e, possivelmente, altas
doses de vitamina A aumentam a mortalidade. A suple-
mentação de ácido fólico e complexo B também não tem
benefício quando feita indiscriminadamente. Todos es-
ses dados fizeram parte de um editorial do
Annals of Inter-
nal Medicine
de 2013, com o título
Enough is enough
, dando
um basta ao desperdício de dinheiro.
1
Nesse artigo, po-
rém, os autores advertem que, no caso da vitamina D, es-
tudos sobre prevenção de quedas poderiam ser úteis.
Lembro também da polêmica gerada pelo ganhador
de dois prêmios Nobel Linus Pauling, que apregoava o con-
sumo de doses exageradas de vitamina C rotineiramente.
O conhecimento do raquitismo vem do início da era
cristã com Sorano de Éfeso e Galeno, que propunham o
aleitamento materno até os 2 a 3 anos (e proibindo o co-
lostro). No entanto, desde 1650, o raquitismo foi trata-
do com óleo de fígado de bacalhau por Francis Glisson
,
professor da University of Cambridge.
2
Na Inglaterra, EdwardMellanby, em experiências com
cachorros, observou que o óleo de fígado de bacalhau re-
vertia o raquitismo. Isso inspirou Elmer McCollum a
descrever, em 1922, a vitamina D (que, no início, achou
que era a vitamina A).
O pediatra alemão Kurt Huldschinsky descobriu que
o raquitismo poderia ser curado com raios ultravioletas,
mesmo antes da descoberta da vitamina D. Não havia sol
em Berlim naquele período. Harry Goldblat e Miss K. M.
Soames publicaram em 1922 a relação dos raios ultravio-
letas com a vitamina D.
A vitamina D foi isolada na Alemanha por Windaus,
ao mesmo tempo que ingleses, holandeses e americanos,
ganhando o prêmio Nobel.
As ações extraósseas da vitamina D são conhecidas há
mais de um século. Inicialmente era usada para tratar a tu-
berculose (na época,
phthisis
). Em 1848, no Royal Bromp-
ton Hospital, médicos ingleses conduziramum estudo con-
trolado para tuberculose, em que 542 pacientes receberam
óleo de bacalhau (3,6 mL, 3 vezes/dia, aumentando até 42
mL/dose), enquanto 535 não o receberam. No final, haviam
piorado ou morrido 33% dos pacientes do grupo controle,
contra 19% do grupo tratado. No grupo tratado, o peso au-
mentou em 70% dos pacientes, diminuiu em 21% e estacio-
nou em 7%. O grupo controle não foi pesado. Deve-se lem-
brar que o bacilo de Koch foi isolado em 1892, as primeiras
radiografias foram feitas em 1895, e as análises estatísticas
apareceram em 1922 (Fisher). Certamente, esse estudo não
seria aceito nos dias de hoje. Curiosamente, o autor que re-
viu o estudo afirma que naquele hospital, na década de
1960, todos os médicos receitavam óleo de fígado de baca-
lhau rotineiramente, sem saberem o porquê.
3
A plausibilidade biológica não pode ser justificativa
para seu uso.
4
Identificaram-se mais de 3 mil sítios de li-
gação da vitamina D no corpo humano, em cerca de 3%
de todos os genes. Há décadas utilizamos evidências
clínicas para recomendar um tratamento, mais que
possibilidades teóricas ou opiniões pessoais para seu uso.