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Jamb Cultura 2016; 9(39):289-296

291

Crônica

Coração

P

ronto, e agora? Não; definitivamente acho que vai

ser muito desagradável. Uma notícia destas, assim

de repente, como um soco no peito... vai ser pro-

blema. Como vou dividir tudo com gente que até agora

mesmo não conhecia? Isto não pode acontecer! É a mi-

nha vida. Toda aminha vida! Meu coração é sómeu, não

é lugar pra qualquer um ir entrando e, ainda pior, sem

convite. Muito me admira minha cardiologista, pessoa

de confiança que conhece meus poucos males, propor

uma invasão de privacidade desta monta. Esta conver-

sa de que guardamos nossa memória no cérebro é pura

balela, história de médico. No coração. É lá que a vida se

ajeita. Pra cada momento um cantinho, pra cada desejo

um pulsar. E agora você, minha doutora, vem dizer que

mesmo assintomático seria de bom alvitre ser submeti-

do a uma intrometida cineangiocoronariografia? O gran-

de problema é que disse na frente de Té. Danou-se, vou

ter que fazer. Não tem como fugir. Nunca mais levo mu-

lher em consulta. Da próxima vez vou com um amigo;

escutamos tudo, saímos, vamos pro bar, bebemos e es-

quecemos. Com Té, nã-nã-ni-nã-não. Numminutinho e

já tenho guia de internação, hospital, médico, dia e hora

marcados. Tentei escapulir, trocando a internação por

uma viagem, qualquer uma, pra espairecer, clarear as

ideias, relaxar (o corpo e o coração)... nada feito. E ain-

da se ofendeu. Quando Té cisma, não temnegócio, nem

conversa, ninguém convence.

No tal dia, lá vou eu. Coração acabrunhado, quase

commedo de “bater”, desanimado, com fome, sede e to-

talmente despreparado para ter todos os meus segre-

dos desnudos. Vesti aquela camisola ridícula, que dei-

xa a gente com a bunda de fora, ouvi a lenga-lenga de

sempre, que vai correr tudo bem, que o doutor é muito

bom, que é só um exame. Este é o problema: vão exa-

minar minha vida, tim-tim por tim-tim. Olhei muito

pra Té com a esperança de ainda ouvir um: “Tudo bem,

vamos embora...”, ledo engano. Ganhei um beijo e um:

“Boa sorte, estou te esperando”.

Adentrando a sala de exames da intimidade alheia,

a primeira coisa que vi foi uma enorme tela de TV. Fi-

quei mais deprimido. Pensei: deve ser LED, Full HD, 3D

e todos os outros Ds capazes de compor uma TV bisbi-

lhoteira. Me ajude, meu Santinho Padi Ciço Rumão Ba-

tista (agora como nordestino honorário já tenho direito

de clamar por um santo da terrinha). Sem ouvir minhas

preces, uma enfermeira enorme (porque naquela sala to-

das elas parecem tão grandes?) “pega” uma veia e nem

senti (minhas dores não são físicas). Na outra mão um

“botão” anestésico e aí vem o cateter enxerido. Olhei pra

tela e nitidamente vi minha vida passar. O coração, além

de sábio e compassado (para cada enredo uma “batida”),

é na verdade composto por inúmeras caixinhas, onde ao

passar dos tempos vamos acumulando sorrisos, lágrimas,

amores, desamores, emoções, tristezas, ilusões, angús-

tias, sonhos ..., em resumo, a vida. E ali estava ela, límpi-

da e clara, exposta naquela tela, pra quem pudesse ver.

Vi todas as minhas caixinhas serem abertas e vasculha-

das. Sorri em alguns momentos, derramei uma lágrima

em outros quando, repentinamente, o doutor pergunta:

– Já sentiu dor no peito? – neste instante foi aberta a

caixa do primeiro “NÃO” de uma namoradinha.

– Só na adolescência – falei baixinho.

Novamente a pergunta:

– Já sentiu dor no peito?

– Pra não deixá-lo preocupado, achei melhor dizer não.

– Pronto. Terminou o exame. Coronárias semiobs-

truídas. Vai ser submetido à angioplastia – retirou as

luvas e saiu da sala.

Olhei novamente a tela e a única imagem presente

eramminhas tortuosas coronárias. Neste momento me

dei conta. Toda a minha angústia esvaiu-se ao concluir:

– Eles são médicos, todos veem doenças; apenas al-

guns, as emoções.

Wagner Luiz Moreira Guerra

Medicina do Trabalho

João Pessoa – PB

1

o

lugar

IV Concurso

Nacional

de Crônicas

e Contos

da AMB