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Jamb Cultura 2016; 9(39):289-296

G

ilmar fez as malas. Olhou pela última vez aquele quarto

ainda cheirando a queimado. Por instantes, reviveu seus

últimos dias naquele apartamento. Não queria levar lem-

branças. Desta vezMarialva foi longe demais. Ainda de joelhos,ela

implorava, sem saber se impedia sua saída ou agradecia a Deus

pelo desfecho comvida!

Ele não sabe como a suportou tanto tempo. Conheceram-se

há 5 anos, e logo no primeiro encontro devia ter desconfiado dela.

Gilmar comprava goma demascar na farmácia para aliviar omau

hálito que o acompanhava desde a infância e, certamente, res-

pondia pela sua terrível solidão quando notou aqueles olhos fi-

xos em sua direção! Correspondeu, sim, por que não? Há quanto

tempo estava sozinho? Quantas vezes foi rejeitado após as pri-

meiras palavras? Não se lembra da última vez em que ouviu al-

guém dizer: ”Eu te amo”. Marialva, alta, morena e atraente, cabe-

los nos ombros e uma pintinha no queixo, poderia ser, sim, o amor

da sua vida! E ele também já passava dos cinquenta, fazer o quê?

Ao saíremdali, já acertaramos encontros domês em curso. Ela

queria ter certeza que o veria depois! Interrogatório detalhado,

lembrava formulário para emprego público oumesmo cadastro

para o Bolsa Família: idade, endereço, onde trabalha, tinha famí-

lia? Mês que nasceu (acreditava muito em horóscopo e preten-

dia fazer o mapa astral dele). Aquele encontro não foi um acaso,

o universo estava no comando!

Grudados a maior parte do tempo, iniciou-se a fusão: não se

sabia onde começava um e terminava o outro! E o namoro foi

ummar revolto de ondas gigantes, quase um tsunami, alterna-

do por calmarias e dúvidas, céu sempre encoberto.

Com quem estaria Gilmar nos intervalos dos encontros? E

aquele atraso no domingo? Havia outra, podia até jurar! Casa-

ram-se. No início ele até gostava, mas com o tempo trocaria qual-

quer coisa por algumas horas livres daquelas garras! Lembrava-

-se com saudade das horas passadas na cadeira do dentista, nas

intermináveis filas dos bancos e até dos longos engarrafamentos.

Felizes para sempre? Quemdisse foi o padre, que não conhecia

Marialva, caso contrário teriamudado o veredicto! Até que amor-

te os separe? Isto, sim, ela levou a sério e por pouco não concreti-

za. Sairia de cabeça erguida, cabelos queimados, mas bem vivo.

Dormiam em quartos separados há algum tempo, enquanto

Gilmar planejava comcalma a separação. Para seduzi-lo,Marialva

esgotara osmanuais do Kama Sutra,filmes eróticos e certas armas

ditas infalíveis, para homens assimdecididos a deixar o lar, como

estava o Gilmar:trajes de vaqueiro valente,chicotadas leves,meias

com ligas vermelhas,vestimenta de dançarina aposentada,já um

pouco disforme (amulher já passava dos 40),e nenhumresultado!

Faltavam-lhe recursos para continuar consultando mãe Dadá,

que sempre lhe dava alguma esperança:“Calma, minha filha, as

coisas vão se ajeitar, as cartas não mentem!”

Tentaria mais uma vez, a última, era tiro e queda! A primeira

parte do plano, convencer Gilmar a participar, foi difícil. O coitado

ainda tentou argumentar:“Mas prá que tudo

isso mulher? Você não acha que já foi longe

demais?” Inseguro, relutante e temeroso fi-

cou o homem completamente nu, tendo Ma-

rialva colocado forte venda nos seus olhos!

Calma,querido,abrirá os olhos na hora

certa, você não vai se arrepender!

O quarto estava à meia-luz, velas ace-

sas espalhadas desde a entrada contornavam o

ambiente, e o cheiro forte de incenso indiano

lembrava mais uma sessão de descarrego! Len-

çóis esticados nas paredes, presos compegador

de roupas, sugeriam uma tenda árabe! Essa era

a ideia. Ao som excitante de cítaras e guitarras teria

início o evento que poderia salvar seu casamento.

Umpouco nervosa pela audácia do seu plano,

insegura e trêmula, vestida a rigor, tentando uma

performance

elegante, com respiração contida para

manter a falsa barriga de tanquinho, iniciou umbre-

ve ensaio antes de tirar a venda do coitado:começou a rodar

os véus, enquanto, na ponta dos pés, executavamovimentos

ondulantes comos quadris, tremores nos braços abertos e

aquele biquinho labial sensual, na intenção de umbeijo!

Umgiro mais ousado e pronto, tropeça e cai! Ai, meu

Deus, que desastre! O fogo se espalha pelas paredes!

Não como ela desejava,embaixo dos lençóis,mas em

todo o quarto!

Pequeno acidente!Muita fumaça! Corrempelados,

ele ainda vendado,tropeçando,caindo,tossindo e xingan-

do! Jurando vingança até emoutras vidas! Ela, assusta-

da,coitada,gritava socorropradoméstica,que acordou

atordoada comos gritos e topou comos dois pelados,

tentando enrolar-sena toalhadamesa semsucesso!

“Valha-meDeus,seuGilmar! LogooSr.,homemsé-

rio e respeitoso,só‘bom-dia,donaMaria,boa-

-noite,donaMaria’,e agora parecendo até

umsuper-herói comestavendapreta

mostrando as intimidades? Sou cris-

tã e peçominhas contas!”

–Maria, por favor, encha todos os

baldes! Não vai faltar água, não, imbe-

cil,é incêndio no nosso quartomesmo!

Depois disso,ohomemdecididoapartir,

desesperada,ainda teveMarialva a infeliz

ideia de apertar-lhe o pescoço comuma

calcinha.Quemsabe ele não desistia?

Conceição Silva Andrade

Cardiologia

Salvador – BA

Conto

Chamem os bombeiros

1

o

lugar

IV Concurso

Nacional

de Crônicas

e Contos

da AMB