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Crônica

Cura pelo cura

“Para conhecer a Alquimia temos que trabalhar no laborató-

rio e no oratório.”

A

fraternidade endêmica de nosso burgozinho mineiro

vamos encontrá-la

full time

na pessoa do Monsenhor

José Roberto, pároco sempre de braços abraços, como

sobrecéus protetores.

Boníssimo pastor que é, e zeloso sobremodo, já o surpreen-

di – antecipando-se aos leiteiros e padeiros, em sua faina da

madrugada – na visita ao rebanho folclórico, quando entrega-

va em domicílio, como aqueles faziam com seus produtos de

primeira necessidade, a santa hóstia do cidadão

in extremis

.

O Centro de Tratamento Intensivo (CTI) do pronto-socorro de

nossa Igreja não permite a ninguémmorrer de inanição espiri-

tual. O doce consolo da religião está de plantão diuturnamente.

Acendendo uma vela para Deus e outra para o diabo, em

um “era uma vez” bem distante, certo chacareiro, moribundo,

mandou nos chamar, os dois – seu vigário e o doutor –, simul-

taneamente por precaução o cristão e o ateu.

Cobrimos uma parte do percurso de carro. A outra, breve, po-

rém, mais difícil, deveria ser avançada em veículo de tração ani-

mal. E como o Gordo e oMagro do cinema, lá fomos os dois abole-

tados numa caleça, que compensava com charme nostálgico (já

não existiam tílburis àquela época) o que oferecia emdesconforto.

O dia, muito claro. O céu sofria uma hemorragia de azul,

perdendo turquesas, safiras e turmalinas marianas em bor-

rões de Rorschach lápis-lazúlis, um repto para nossa interpre-

tação tacanha, é óbvio.

O cavalo comia morangos silvestres à direita e à esquerda

en

passant

. Algumas vezes abandonava suas elucubrações bergma-

nianas emordia,semcerimônia,a bunda suja do próprio,umcabo-

clinhomenino que ia à frente,guiando o quadrupedezinho a pé e

quase dormindo,como fazia certamente à hora da sesta e da esco-

la,reservando a exuberância juvenil só para o

footing

do domingo.

Para o Monsenhor –

fumata bianca

– e pra mim – fumaça

negra –, sobrava o que o animal “descomia”musicalmente. Fe-

lizmente, a reiteração da sonoridade do processo digestório não

deixava dúvida quanto à origem alimária do mesmo e não per-

mitia a nenhum de nós fazer mau juízo da educação e da so-

ciabilidade do outro, como na piada do presidente cascudo ao

lado da rainha da Inglaterra, ambos a bordo da carruagem pa-

laciana. Pois somos gente fina, sabemos fazer das tripas coração.

As propostas, ora teológicas, ora científicas, de permeio as

alquímicas, tentavam, em vão, jogar bem alto. Decidíamos os

destinos do mundo, enquanto o nosso mesmo era uma indeci-

são de dois pobres-diabos a serviço da condição humana – sau-

davelmente incorrigível.

Sabíamos que o doente estava mal e que tinha sido um

bom homem.

Discutia-se se o mesmo iria receber uma medicina pastoral

ou um pastoreio médico. Cada um de nós – cavalheiros educa-

dos, já o disse – deixando para o outro a função de substanti-

vo na expressão vernácula, fazendo mesmo questão de repre-

sentar tão só o adjetivo, sempre mais humilde.

O calor aumentava e o Monsenhor desdobrava, à maneira

de bênção, um guarda-chuva municipal, pálio e herói anôni-

mo de tantos combates e embates, proteção para nós ambos.

E lá fomos os dois – “o Senhor é bom, é nosso Pai”, dizia ele, “...

mas o diabo não é tão mau, também é filho de Deus”, dizia eu...

– como duas comadres vizinhas – “blá-blá-blá...” – na menopau-

sa, enquanto o rocinante alheio – ...pum, pum e pum.

Já na casa do doente, incontinente, os santos óleos foram ad-

ministrados pelo homemde Deus. O substantivo do religioso (pas-

toreio) impusera-se, tinha prioridade. O caso era perdido para a

medicina. Ainda assim, o padre deixou rapidamente o quarto.

Era a minha vez de médico, diabolicamente adjetivo no caso.

À certa altura do exame, solicito dos familiares um lubrifi-

cante, um azeite qualquer de cozinha, para a luva de toque re-

tal, no que fui atendido de pronto.

O exame, desagradável e deselegante, fatura um câncer de

reto, metastático, incurável. O criminoso estava ali, entre as

fezes e o sangue, e cumprimentava-me sarcástico. Fatalidade.

Vontade de deixar assinado o atestado de óbito com o ma-

terial nojento do dedo enluvado e cúmplice.

De volta da desolação, o mesmo pangaré-turíbulo. Depois

o conforto do carro, longe da cena do crime.

Umultraje está atravessado naminha garganta.Confesso-o ao

padre amigo –“Durante o exame descuidei-me, troquei inadverti-

damente os óleos e usei aquele santificado para a unção. Empre-

guei-o para o toque retal ao invés do óleo doméstico”– umsacrilé-

gio,mas involuntário deminha parte,absolutamente,posso jurar.

Desta vez o guarda-chuva não foi aberto. Como bengala é

que ele lavou a honra do Senhor através da diligência de Seu

filho, o cura da aldeia. Eu, o curador esculapino, cabeça de cabe-

los nada bastos, me vi emmaus lençóis. Sorte que sempre tive

uma reserva acolchoada de ideias sobre o cocuruto para aliviar

os golpes de qualquer penitência em ocasiões como essa. Des-

ta feita, cuidei de besuntar sobre a lesão cefálica, ardida, o úni-

co óleo à mão, o canônico de novo.

Foram-se os anéis,vão-se os dedos.O tempopassou.Opaciente –

milagredosóleos–saroucompletamente,“milagrouescaposamente”.

O fato é que eu penso ter sido o Monsenhor – afinal foi ele,

o religioso, que aviou e consagrou o óleo litúrgico – o médico a

salvar o canceroso. E ele acha que fui eu (“seu doutor”), inves-

tido na dignidade de sacerdote, embora desastrado quanto ao

“lócus” de aplicação da untuosidade sacra. Como no duelo do

Kid Morengueira,“eu garanto que foi ele, ele garante que fui eu”.

Verdade? Mentira? Já não sei quando digo uma, quando

digo outra. Lembrem-se que levei senhoriais bengaladas pela

cabeça. A propósito, ainda não melhorei do antigo “galo” aqui

no alto do bestunto. Ou seria uma tonsura, uma “coroinha” re-

verendíssima, como a do venerável amigo?

Outra propriedade miraculosa dos óleos clericais ou bana-

líssima: alopecia areata estabelecida?

Hermes Bernardi

Clínica e cirurgia geral

Ouro Fino – MG

2

o

lugar

IV Concurso

Nacional

de Crônicas

e Contos

da AMB