Por que a judicialização na
saúde é nefasta
Raul Cutait*
E
m um sistema público de saúde
combalido pelo financiamento
insuficiente e por um modelo de
gestão que facilita ineficiência, o volu-
me das ações de judicialização assusta:
calcula-se que 7 bilhões foram despen-
didos por meio de ações em 2016, algo
em torno de 2,5% do orçamento federal
destinado à saúde para esse ano. A judi-
cialização na saúde, da forma que vem
ocorrendo, sem critérios definidos para
sua solicitação e seu cumprimento, é
nefasta por vários motivos.
A judicialização na saúde é um
mecanismo que tem sido cada vez mais
empregado para o Estado fornecer medi-
camentos não disponibilizados pelo sis-
tema público. É legítimo que, caso exista
algo que possamelhorar o tratamento de
um indivíduo, ele use todos os recursos
possíveis para ter acesso àquilo de que
precisa. Contudo, por meio dos proces-
sos de judicialização, surgem inúmeros
problemas, como os descritos a seguir:
1) os juízes, de ummodo geral, não têm o
conhecimento científico para tomar de-
cisões quanto à real necessidade de um
medicamento para alguém que o solici-
ta, o que compreensivelmente pode lhes
causar uma situação de conflito interior,
na medida em que a eventual recusa de
um pedido pode fazer a diferença entre
a vida e a morte do solicitante; 2) o atual
crescimento exponencial dos processos
de judicialização ocupa cada vez mais
um sistema judiciário que já não dá
conta do que tem para resolver; 3) o vo-
lume de recursos envolvido é muito alto,
estimado em 7 bilhões de reais em 2016,
como mencionado anteriormente; 4)
nem sempre o medicamento solicitado
é a alternativa cabível, tendo em vista a
relação custo-efetividade, ou seja, o real
benefício que o solicitante terá em ter-
mos de sobrevida e qualidade de vida, a
ponto de justificar que se aloquem a ele
recursos que poderiam ser empregados
emfinalidades de interesse comunitário.
Uma vez que os recursos para a
saúde são finitos e um sistema públi-
co não pode deixar de administrar o
conflito entre necessidades coletivas e
individuais e, mais ainda, que o Judi-
ciário não é a melhor via para resolver
esse tipo de problema, que caminhos
procurar? O primeiro ponto a ponderar
é sobre quais medicamentos podem ser
solicitados em circunstâncias especiais.
É possível definir quatro grupos, que re-
querem encaminhamentos distintos: 1)
os que não foram aprovados nem pela
Agência Nacional de Vigilância Sani-
tária (Anvisa), nosso órgão regulador,
nem no exterior; portanto, creio que
esses não deveriam ser contemplados
por não terem sido aprovados pela co-
munidade científica; 2) os que não fo-
ram aprovados pela Anvisa, mas foram
aprovados por órgãos no exterior de alta
credibilidade, com convênios firmados
com nossa agência reguladora, como
a US Food and Drug Administration
(FDA). Esses medicamentos poderiam
ser pleiteados; 3) os que foram aprova-
dos pela Anvisa, mas que, por qualquer
motivo, não foram incorporados ao sis-
tema único de saúde (SUS). Nesses casos,
a requisição especial poderia ser plei-
teada; e 4) os que foram aprovados pela
Anvisa, incorporados pelo SUS, mas que
não são fornecidos por motivos admi-
nistrativos ou de custo.
O segundo ponto diz respeito a
como encaminhar essas solicitações.
A via, sem dúvida, não deve ser a ju-
diciária, e sim a administrativa, por
meio das secretarias estaduais da saú-
de, que, com câmaras técnicas cons-
tituídas especialmente para esse fim,
conseguirão julgar os pedidos. Será de
grande valia um formulário especial,
para que o médico não apenas prescre-
va o medicamento, mas justifique sua
indicação. A participação do Conselho
Federal de Medicina, nesse sentido, é
primordial.
Finalmente, seguem alguns da-
dos bastante expressivos da Secretaria
Estadual da Saúde de São Paulo, que
dispende cerca de 1,2 bilhão de reais
por ano com solicitações judiciais: 30%
dos medicamentos solicitados não são
retirados; existem solicitações frívolas,
como de absorvente feminino, e outras
de má fé, que levantam a suspeita de in-
teresses escusos. Finalmente, a mais re-
levante: 29 medicamentos oncológicos
correspondem a 80% dos gastos, o que,
do ponto de vista prático, levanta as per-
guntas que não querem calar. Mesmo
podendo atuar de forma eficaz, quanto
esses medicamentos vão impactar na
qualidade de vida e no tempo de sobre-
vida para os solicitantes?
Deveria existir uma política defi-
nindo critérios para fornecer ou não de-
terminados medicamentos em função
da relação custo-efetividade? Minha
conclusão é a de que a avaliação técnica
é imprescindível para qualquer decisão,
para proteger tanto o indivíduo quanto
o Estado, e até mesmo o Judiciário.
*Professor do Departamento de Cirurgia da
Faculdade deMedicina da Universidade de São
Paulo e cirurgião do Hospital Sírio-Libanês.
Judicialização
8
■
JAMB
■
JANEIRO/FEVEREIRO
2017