Jamb Cultura 2017; 13(43):313-320
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Crônica
O indômito Daniel
Início dos anos oitenta. Magda tinha, se muito, 27 anos.
Sua aparência jovial e saudável estava longe de transpa-
recer os graves problemas de saúde que já enfrentara e
de cujas sequelas ainda padecia.
No último trimestre do ano anterior, depois de duas ges-
tações de risco,comintervalo demenos de dois anos,que lhe
trouxeramà luz seu casal de filhos, viu-se na contingência
de ter que realizar novas cirurgias. É que, no curso do trata-
mento de uma infecção renal recidivante e resistente à anti-
bioticoterapia,foramdiagnosticados vários cistos ovarianos
bilaterais,alguns volumosos,que,por recomendação de seu
ginecologista, deveriamser extirpados semmaior delonga.
Considerando ponderações médicas de que esses no-
vos agravos à saúde desaconselhariamuma terceira gravi-
dez, concordou em aproveitar a oportunidade da ablação
dos cistos para realizar laqueaduras tubárias, até porque
o esposo achava que sua prole já estava de bom tamanho.
Ademais, aproveitaria a oportunidade dos procedimentos
cirúrgicos para realizar uma sempre adiada plástica de pe-
ríneo de que necessitava.
O tríplice evento cirúrgico transcorreu sem maiores
transtornos, e, do pós-operatório imediato, a paciente
convalesceu rápida e tranquilamente.
Entretanto, decorridos alguns poucos meses dos pro-
cedimentos cirúrgicos realizados, eis que Magda come-
çou a notar um surpreendente e progressivo aumento de
seu ventre. Nos meses subsequentes, realizou com fre-
quência consultas e exames, os mais diversos, buscando
identificar, sem êxito, a causa desse insólito fenômeno.
Teriam os múltiplos cistos recidivados e, nesse caso,
poderiam, de fato, condicionar aquele estranho e avan-
tajado volume abdominal? Seria um grande fibroma, não
detectado no pré-operatório ou no curso da cirurgia gi-
necológica? Poderia ser portadora de um tumor renal?
Ou estaria acometida de alguma insidiosa neoplasia a
colocar em risco a sua vida?
Já no curso do quarto para o quinto mês da evolução
da estranha distensão abdominal – durante a qual teve
que receber, por semanas, elevada carga de potentes an-
tibióticos para debelar a infecção renal crônica de que era
portadora –, foi-lhe indicada pelo nefrologista uma mi-
nuciosa investigação radiológica do aparelho renal, com
vistas a detectar possíveis malformações que poderiam
funcionar como mantenedoras da rebelde infecção. Ao
todo, foram realizados 17 filmes. Lembremos que, à épo-
ca, não contávamos com os modernos recursos de ima-
gens de que dispomos.
E foi aí – surpresa! – que, para a alegria e alívio de todos
os familiares emédicos, apareceu a silhueta de uma crian-
cinha que se banhava despreocupadamente nas tépidas
águas de seu útero, onde já ensaiava tímidas cambalhotas...
Dias depois, recebi em consulta pediátrica essa auda-
ciosa criança, que, com certeza, se aninhou no claustroma-
terno antes que as laqueaduras tubárias lhe bloqueassem
o caminho para a vida. Fiquei feliz em ver a criança sau-
dável, sem apresentar, naquele momento, qualquer sinto-
ma ou sinal de comprometimento de sua saúde, em que
pesem as manipulações cirúrgicas, radiológicas e medi-
camentosas por que passou sua sofrida mãe, desde os pri-
meiros dias da concepção.
Ao final do atendimento, permiti-
-me sugerir, convicta fiel da con-
fissão religiosa“Testemunha de
Jeová”, que desse ao seu filho
o nome bíblico de Daniel, que
significa “Deus é meu juiz”,
lembrando a célebre respos-
ta do grande profeta ao impie-
doso rei que o havia lançado à
ferocidade dos leões famintos.“O
meu Deus enviou o seu anjo e
fechou as fauces dos leões,
que não fizerammal al-
gum, porque o Seufilho
estava inocente.”
SebastiãoAires deQueiroz
Pediatria/Medicina
do Trabalho
João Pessoa – PB