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Jamb Cultura 2017; 12(42):305-312
N
ão dá pra entender um país como o nosso. Tem de
tudo para qualquer gosto. Golpe, massacre, queda
de avião, fraude eleitoral e por aí vai. Cheguei de fé-
rias, justo no período eleitoral, mas, como sou ruim de calen-
dário, não atinei para o mês. Fui logo pedindo à patroa que me
aprontasse uma fantasia que o Carnaval já estava nas ruas.
— Você ficou maluco?! Nós estamos em plena eleição. O
povo está fantasiado é de descamisado.
Enfiei o rabinho entre as pernas, tomei o meu título e ten-
tei encontrar primeiro a minha seção eleitoral. E foi uma ma-
ratona... Depois de vencer um cordão de isolamento, derrubar
dois policiais e enfrentar um cão com dentes à mostra, afinal
entrei na fila... errada.
—Moça, eu sempre votei aqui nesta escola. O nome con-
fere com a que eu votei no ano passado: Escola Manoel Barbo-
sa, bairro do Cabula.
— É... mas o senhor foi recadastrado. Agora o Sr. vota no
Centro Comunitário da Baixa do Tubo.
—Mas eu não matei, não roubei, não sou condenado pela
Justiça, por que o castigo?
—Não é castigo, não. O Sr. foi recadastrado.
— Tenho que pagar alguma coisa também?
— O Sr. está desacatando uma autoridade. Eu sou mesá-
ria e não estou aqui pra ser subornada. Mando lhe prender por
tentativa de suborno!
— Precisa não, moça. Eu saio numa boa.
Tomei o primeiro coletivo com destino à minha suposta
seção eleitoral e novamente quebrei a cara.
— Esse transporte é do PPT. Vai caindo fora antes
que a militância lhe ponha pra correr.
— Calma!!! Eu saio numa boa. Tenho
dois filhos pra criar e não vou causar
nenhum problema. Só estou que-
rendo exercer meu direito de
ser cidadão.
— Tá com cara de mili-
tante de direita. Dá um pau
nele!
Tentei usar uma lin-
guagem moderninha e,
parece, a emenda foi pior
que o soneto.
— Gente fina, eu só quero votar! Exercer meu direito de ci-
dadão. Não sou militante nem de Centro Comunitário.
— É militante vendido. Esta cantilena, enquanto justifica-
tiva, é falsa.
Marquei a abertura da porta e me atirei na rua. Fui literal-
mente envolvido por uma multidão que carregava faixas e santi-
nhos que quase me sufocaram. Não percebi que, ao descer do ôni-
bus, estava comum santinho de candidato da oposição nas costas.
Não tive tempo de me explicar e tratei de correr na doce ilusão de
me livrar da turba. Fui praticamente engolido por outra militân-
cia de santos e bandeirinhas e não tive muita escolha a não ser
empunhar uma bandeira e dar vivas a meu suposto candidato.
Desfilei por um quarteirão inteiro antes de me livrar do comício
ambulante. Consegui, depois demil informações desencontradas,
chegar afinal ao lugar onde iria desempenhar aminha função de
cidadão, oumelhor, no bom estilo esquerda-festiva, exercer meu
direito de cidadão. Ledo Engano. Assimmesmo commaiúscula.
— A seção é esta, a escola é esta, a rua é esta, mas o senhor
chegou atrasado. O horário de votação encerrou. Volte pro se-
gundo turno.
—Mas moça...!!
— Senhora, se me faz favor!!
— Senhora, eu queria saber...
— Se é informação, pergunte lá fora porque eu sou mesá-
ria e não posso dar informação. Muito menos pra descamisado.
—Mas eu não sou descamisado. Eu perdi a camisa.
— Já sei. Fazendo boca de urna, o que é proibido. Seguran-
ça!!! Prende este cara aí que está perturbando a eleição.
Com muito papo consegui convencer a
otoridade
que eu
não era um marginal, tinha carteira profissional assinada, etc
e tal. Comprei uma camisa no camelô da esquina pra voltar pra
casa, o que completou minha desgraça. Minha mulher não en-
tendeu a mudança de camisa e pensou que tinha sido trocada,
certamente, na casa da outra.
Agora curto minha ressaca no banco da praça e ainda agra-
deço aos militantes que esqueceram na rua os folhetos de pro-
paganda que me aquecem nesta noite fria e mal dormida.
Não dá pra entender este país.
Ildo Simões
Médico Fiscal
Salvador — BA
Eleições
(ou como vota um recadastrado)