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Jamb Cultura 2016; 10-11(40-41):297-304
A
tendi uma senhora de 75 anos visivelmente mal-
tratada pela vida que levava. Nessa semana, mais
uma vez, ainda que buscasse não me irritar com
sua aparente desatenção, isso era missão quase impos-
sível. Sempre vinha desacompanhada e com alguma di-
ficuldade auditiva e visual, falava muito pouco, sempre
se queixando de intermináveis e insondáveis dores fí-
sicas variadas; era desagradável repetir três ou quatro
vezes o que deveria fazer quanto a seus exames e trata-
mento. Como que para se proteger, a desculpa reticente
era que os quatro filhos estavam sempre muito ocupa-
dos para vir à sua consulta.
Entre outras coisas, iniciado o tratamento com anti-
depressivo, com trinta dias, passou a se abrir um pou-
co mais sobre sua vida. Até já esboçava um leve sorriso.
Viúva, no fundo sentia-se solitária e abandonada pelos
filhos, com os quais pouco falava, mesmo morando to-
dos na mesma cidade.
Fui tomado por um sentimento de autocensura, pie-
dade, seguida de profunda empatia por aquela pobre
criatura. Como médico, nessa hora, o que fazer além de
escutá-la? Logo percebi que eu era ainda uma das pou-
cas pessoas às quais ela se apegara para manter a es-
perança de que valia a pena viver como um rastilho de
pólvora. À sua estranha maneira de ser, ela
buscava valorizar aquela consulta, para
mim mera rotina, que parecia ser a
visita à casa de um grande amigo
que jamais tivera um dia...
Paulo Rebelo
Cardiologia
Macapá – AP
Crônica
A visita