Previous Page  3 / 8 Next Page
Information
Show Menu
Previous Page 3 / 8 Next Page
Page Background

Conto

Cegonha

E

m Belo Horizonte chovia. Em São Paulo garoa-

va. Em Florianópolis nublava. Eu voava entre as

três capitais, acima das nuvens e das mudanças

da meteorologia.

Lá, o clima paramimera outro. Umsol forte brilhava e

nuvens formavamum imenso tapete branco, entremeado

de almofadas tambémbrancas cobrindo todo omar e terra.

Avançava pelas alturas, no assento 21F, janelinha, é

claro, para poder melhor apreciar o céu, aliviar a claus-

trofobia, e saboreava um copo de água e ummix de ce-

reais. Fone de ouvido abafando o barulho dos motores,

escutava Miles Dave.

Esperava chegar ao destino antes do meu neto, To-

mas, também a caminho.

Os dois lugares ao meu lado estavam vazios e deixei

sentar ali, primeiro, o Rubem Braga, com a menina que

em tempos passados viajara com ele, em uma crônica

rumo ao Rio de Janeiro. Ele iniciara um papo agradável

comuma criança esperta e acabara de dizer que vira um

anjo sentado nas nuvens. Ela pediu que lhe mostrasse

um e ele argumentava que não era assim tão fácil. Eram

tímidos e nem sempre se exibiam. Com sorte talvez...

Assim que se foram, sentou a alemãzinha, dos seus

sete, oito anos, que encontrei no corredor estreito de um

trem entre Berlim e Dresden, onde ficaria, e eu seguiria.

Lourinha, como convémaos arianos, e comuma bota de

couro que subia até o meio da canela e dobrava em um

pelo, ia de um lado ao outro exibindo um sorriso lindo e

pedia para conversar comigo. Não fiz de rogado e durante

o tempo da viagem, sem saber uma palavra de alemão e

ela de português, batemos um longo papo, como velhos

conhecidos. Commímica, gesto amplo dela, as fotos do

meu livro-guia e a ajuda de um alemão que, gentilmen-

te, se fazia de intérprete do meu inglês e de sua língua.

Eu mostrava a foto da estátua dos músicos de Bre-

men, o cavalo, o cachorro, o gato e o galo fazendo

uma pirâmide de animais. Pedia para dizer o nome

e ela respondia completando com os sons que cada

qual fazia. Mostrei de onde vinha e para onde ia. Di-

vertíamos e quase morremos de tanto rir quando ela

me perguntou quem era a mulher que via pela porta

de vidro da cabine, dormindo de boca aberta. Assim

que entendeu que era a minha companheira, correu

aos seus pais e voltou apontando e falando: “

Big nose,

big nose

”! Sentamos no chão e rimos tão alto que ela

acordou, olhando, e não entendia nada.

Foi com tristeza que me despedi dela com um abra-

ço, mas antes me levou a conhecer seus pais. Segui...

Assim como sigo para encontrar o Tomas.

O poder das crianças. . .

Foi quando olhei pela janela e vi uma ave voando

uma distância à frente, mas logo ficaríamos pareados

e a deixamos para trás.

Trazia no bico uma longa fralda, deixando escapar pe-

los lados braços, pernas e umpouco da cabeça de umbebê.

As cegonhas são aves de grande porte, afetivas, têmau-

tonomia para grandes voos, como entre o paraíso e a terra,

por exemplo. Sua plumagembranca refletia e se confun-

dia naquele céu, revelando pureza. Protetoras e mono-

gâmicas, de confiança. O transporte ideal para os bebês.

Por alguns minutos, fiquei lado a lado commeu neto.

O avião passou indiferente. Ela não se perturbou e

continuou no bater de asas ritmado e seguro. Não me

preocupei e sabia que era questão de tempo. Esperar

tranquilo a sua chegada.

Ao desembarcar, Ana e Pablo me esperavam. Contei

o que vira, mas já sabiam.

Com uns dias, a Cegonha nos alcançaria.

Sérgio Torres

Anestesiologia

Belo Horizonte – MG

Jamb Cultura 2016; 7-8(37-38):281-288

283