Conto
Cegonha
E
m Belo Horizonte chovia. Em São Paulo garoa-
va. Em Florianópolis nublava. Eu voava entre as
três capitais, acima das nuvens e das mudanças
da meteorologia.
Lá, o clima paramimera outro. Umsol forte brilhava e
nuvens formavamum imenso tapete branco, entremeado
de almofadas tambémbrancas cobrindo todo omar e terra.
Avançava pelas alturas, no assento 21F, janelinha, é
claro, para poder melhor apreciar o céu, aliviar a claus-
trofobia, e saboreava um copo de água e ummix de ce-
reais. Fone de ouvido abafando o barulho dos motores,
escutava Miles Dave.
Esperava chegar ao destino antes do meu neto, To-
mas, também a caminho.
Os dois lugares ao meu lado estavam vazios e deixei
sentar ali, primeiro, o Rubem Braga, com a menina que
em tempos passados viajara com ele, em uma crônica
rumo ao Rio de Janeiro. Ele iniciara um papo agradável
comuma criança esperta e acabara de dizer que vira um
anjo sentado nas nuvens. Ela pediu que lhe mostrasse
um e ele argumentava que não era assim tão fácil. Eram
tímidos e nem sempre se exibiam. Com sorte talvez...
Assim que se foram, sentou a alemãzinha, dos seus
sete, oito anos, que encontrei no corredor estreito de um
trem entre Berlim e Dresden, onde ficaria, e eu seguiria.
Lourinha, como convémaos arianos, e comuma bota de
couro que subia até o meio da canela e dobrava em um
pelo, ia de um lado ao outro exibindo um sorriso lindo e
pedia para conversar comigo. Não fiz de rogado e durante
o tempo da viagem, sem saber uma palavra de alemão e
ela de português, batemos um longo papo, como velhos
conhecidos. Commímica, gesto amplo dela, as fotos do
meu livro-guia e a ajuda de um alemão que, gentilmen-
te, se fazia de intérprete do meu inglês e de sua língua.
Eu mostrava a foto da estátua dos músicos de Bre-
men, o cavalo, o cachorro, o gato e o galo fazendo
uma pirâmide de animais. Pedia para dizer o nome
e ela respondia completando com os sons que cada
qual fazia. Mostrei de onde vinha e para onde ia. Di-
vertíamos e quase morremos de tanto rir quando ela
me perguntou quem era a mulher que via pela porta
de vidro da cabine, dormindo de boca aberta. Assim
que entendeu que era a minha companheira, correu
aos seus pais e voltou apontando e falando: “
Big nose,
big nose
”! Sentamos no chão e rimos tão alto que ela
acordou, olhando, e não entendia nada.
Foi com tristeza que me despedi dela com um abra-
ço, mas antes me levou a conhecer seus pais. Segui...
Assim como sigo para encontrar o Tomas.
O poder das crianças. . .
Foi quando olhei pela janela e vi uma ave voando
uma distância à frente, mas logo ficaríamos pareados
e a deixamos para trás.
Trazia no bico uma longa fralda, deixando escapar pe-
los lados braços, pernas e umpouco da cabeça de umbebê.
As cegonhas são aves de grande porte, afetivas, têmau-
tonomia para grandes voos, como entre o paraíso e a terra,
por exemplo. Sua plumagembranca refletia e se confun-
dia naquele céu, revelando pureza. Protetoras e mono-
gâmicas, de confiança. O transporte ideal para os bebês.
Por alguns minutos, fiquei lado a lado commeu neto.
O avião passou indiferente. Ela não se perturbou e
continuou no bater de asas ritmado e seguro. Não me
preocupei e sabia que era questão de tempo. Esperar
tranquilo a sua chegada.
Ao desembarcar, Ana e Pablo me esperavam. Contei
o que vira, mas já sabiam.
Com uns dias, a Cegonha nos alcançaria.
Sérgio Torres
Anestesiologia
Belo Horizonte – MG
Jamb Cultura 2016; 7-8(37-38):281-288
283