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mâncio-casado-pai-de-dois-filhos. Mãos de dedos longos, longa mão. Linhas forasteiras cavadas no de-

serto do rosto. Pelado de palavras; soltas palavras que nada exigemda vida: Deus, obrigado, sim-senhor...

Lavras e sol na pá de todo dia, puxou lixo, terra vermelha e a família. Chegaram juntos. Tiras de teimo-

sia. Nem acreditava, mas tinha calos de lembranças. O filho mais velho em tudo igual ao pai, pelado também ti-

nha uma pinta bem naquele lugar que pobre tem vergonha de dizer, e pobre tem tanto e não diz! Terra seca de

tudo, até de palavras. Omais jovem é atirador profissional, carrega vagas de crimes nos olhos vitrificados. Amân-

cio-casado-pai-de-dois-filhos lembra bemquando a criança abriu o olhinho pela primeira vez nas águas da vida;

fez que não queria e agora... Vitrificado pela droga, nada na marginalidade e espelha sombras da morte. Sabe

tudo de leis; assalta, mas quem atira é sempre o menor. Se aprendeu a ler, foi motivado pelo código penal; sabe

mais da vida que advogado, que promotor e até juiz. Amulher se dizia, já não o faz mais, emudeceu como a tarde,

escureceu sem lua. A única luz está na lembrança do arraial. O resto foi prostituição, boceta aberta por reais que

até padre chupou. Ainda bem que doutor operou; não deu tempo de ter nenê mulher. De longa caminhada in-

tuiu que o sexo tem a ver com a qualidade do viver. Aprendeu a chorar de faz-de-conta. Varreu até onde deu, de-

pois apelou. Agora corpo não serve mais para uso animal, passa o dia a chulear a culpa nas margens da memória.

Partes de Amâncio-casado-pai-de-dois-filhos não sonham, nem têm consciência; logo, não devaneiam, fizeram

de tudo para sobreviver. Cabelos negros pintados de branco, o homem flana vingança no jardim da praça públi-

ca. Longa mão segura arma que arrota única palavra que justiça ouve. Não importava quem deitava em sangue,

queria acertar contas, melhor se fosse graúdo, mas esses não andavam em lugares públicos. Paciência, se pega-

va o bagre, o grande logo saberia. Cheirou pó que filho esqueceu na gaveta. Nunca pensou que olhos vissem um

outro mundo, que 38 pessoas tivessem cor e a linfa fosse tão vermelha. Bambambã da zona, dizia jornal no outro

dia. Filho-mais-velho-em-tudo-igual-ao-pai, aquele da pinta no pinto, lê e não acredita. O pai sempre foi de pá,

lavra, sol e sins, nunca de tiros. Nessas horas é que se conhece o homem, dizia a si mesma sem saber o que isto

significava, a mãe. O filho-atirador-profissional coloumanchete no espelho do guarda-roupa, queria estar com o

velho, pela primeira vez o via como herói. Sabia do prazer de matar aqueles que mataram antes pela indiferen-

ça. O corpo do pai recebeu mais do que deu, sempre foi assim, dezenas de balas vararam uma caatinga de corpo.

Pai herói. Parecia novela. Meio morto; meio vivo. Estava morto desde o nascimento, sabia. Mas alguns daqueles-

-que-mataram-antes-pela-indiferença tambémmorreram. Pobre sempre tem esperança e naquela ilusão de vida

e de morte acreditou que todos entrariam no mesmo inferno. Demoraram para liberar o corpo de Amâncio-ca-

sado-pai-de-dois-filhos. Longa mão pálida pelo vazamento do sangue, entre flores de segunda e velas queiman-

do, foi velado por poucos. Forasteiro na vida, forasteiro na morte. A mulher-emudecida-pela-tarde deu uma vez

mais ao homem do IML, ao homem da floricultura, ao administrador do cemitério. Alegre estava pela primeira

vez, sabia estar passando sida para todos eles. Filhos-da-puta, sussurrava com dentes cerrados de ódio. O filho-

-mais-velho-em-tudo-igual-ao-pai já sabia de sua sina, futuro certo; o filho-atirador-profissional ficou em casa,

matutando vingança. Tinha planos para acertar cabeças em Brasília. Enterrado corpo, Amâncio-casado-pai-de-

-dois-filhos deixava viúva com boceta ardendo e dois filhos. Um deles cópia xerográfica do sofrimento do velho;

o outro, desviava das balas dos homens da rota. Os bichos comemdedos longos, linhas forasteiras cavadas no de-

serto do rosto. Palavra não diz; nemDeus, nem obrigado, nem sim-senhor... Morreu Amâncio-casado-pai-de-dois-

-filhos, mas os ossos estão lá para soltar palavras que bocas calaram commedo das leis: onde a justiça não dorme?

Conto publicado no livro

A cor e a textura de uma folha de papel em branco

, prêmio UBE/CEPE (Centro de

Editoração Pernambuco), 1998.

Carlos Alberto Pessoa Rosa

Cardiologia e Clínica Médica

Atibaia / São Paulo – SP

Conto

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