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Crônica

Costa Rica

O

aborígene de terracota olha pela janela, co-

tovelos fincados nos joelhos, guardando se-

melhança, com sua testa estreita, com o ho-

mem de Neandertal. A seu lado, repousa no parapeito

uma dançarina da Birmânia, anéis em todos os dedos,

os pés descalços, o esmalte brilhante contornando a

boca em coração, ressaltando toda a sorte de adereços

de ouro puro, configurando uma reverência que só se

presta a uma deusa de beleza incomparável, transbor-

dando erotismo e fertilidade nos movimentos que se

adivinham nos sinos minúsculos, envolvendo os de-

dos como garras metálicas, e que se escondem dobra-

dos nas palmas das mãos em rápidos volteios medidos

com precisão oriental, marcando compassos.

Entre a coleção de corujas de olhos arregalados de

todas as cores e tamanhos, a reprodução de um autor-

retrato de Frida Kahlo, com seu eterno buço e sua ex-

plosão de flores mexicanas e o galo português de por-

celana, a miniatura de um barco pesqueiro no oceano

de madeira de lei da prateleira da sala, que sobrevive

ao convés escorregadio das muitas tempestades notur-

nas, varrendo, com suas ondas gigantescas, milhares

de escamas que sobraram da última limpeza de peixe

fresco, resto de entranhas, chapéus e capas emborra-

chadas, uniforme das tormentas que, em seu tom de

amarelo berrante, localiza o homem ao mar e o devol-

ve com cordas e boias ao conforto aquecido da cabine,

a salvo dos monstros marinhos, que assombram a es-

curidão povoada de náufragos e esqueletos de piratas.

Tudo isso eu contemplo ao mesmo tempo, sentado

numa poltrona de gorgorão cor de azeitona, no bair-

ro de São Pedro da cidade de São José da Costa Rica,

que vou fotografando de memória e revelando, como

a

rolleiflex

do Jobim, a sua enorme gratidão.

Gracias a

la vida que nos ha dado tanto

, embrulhada para pre-

sente pela musicalidade da Violeta Parra e pelas vo-

zes em dueto da Mercedes Sosa e da Elis, com toques

afinadíssimos de Milton Nascimento.

Nem tudo se perde no tempo. Daí a sua gratidão.

Nem a morte, nem a diluição de nossa geração nessa

fila de doenças crônicas que, até então, caminhava de-

vagar, nem o apagar, até aqui, lento, dos seus contor-

nos, devolvendo sua imagem ao esboço inicial, cada

vez mais esmaecido. Nada disso dissolveu a razão de

viver e nemmesmo o fogo imortal da paixão.

¡Gracias, gracias!

Vão-se os anéis, ficam os dedos.

Vão-se os suspensórios, ficam as calças largas e fol-

gadas, não mais apertando a cintura e asfixiando as

impressões e sentimentos.

Tudo é transcendência. Tudo é ou parece ser uma

certa mistura não tão homogênea de ilusão e realida-

de, da qual conseguimos pinçar e sorver nemmenos

que a metade. A outra metade, se o amor não preen-

cheu, ficou vazia à toa, esperando o calor do chimar-

rão, compartilhando o amargo do fim.

Tudo neste fim de tarde, neste ponto longínquo

da América Central, é pura contemplação do não ter

o que fazer senão sorrir, senão chorar, pela inunda-

ção da paisagem que desloca o passarinho, que pare-

ce suspenso ao acaso das asas, que batem à procura

de provisões dos meus tormentos e esperanças. Para

apaziguar a minha fome. Para voar comigo acima de

nuvens improváveis, que jamais foram postas ali pe-

las mãos dos anjos. É só pintura. É só cenário. É só rea-

lejo tocando lento.

Sérgio Perazzo

Otorrinolaringologia

Salvador – BA

276

JAMB Cultura 2015; 5-6(35/36):273-280